"[...] Era natural imaginar-se que Cândido, após tantos desastres, casado com a sua amada, e vivendo com o filósofo Pangloss, o filósofo Martin, o prudente Cacambo e a velha, tendo trazido, ainda por cima, tantos diamantes da pátria dos antigos Incas, levasse a vida mais agradável que é possível. Mas foi tão roubado pelos judeus, que só lhe restou a sua pequena quinta. A sua mulher, de dia para dia mais feia, tornou-se rabujenta e insuportável. A velha adoeceu, e ainda mostrava pior humor do que Cunegundes. Cacambo, que trabalhava na horta e ia depois vender as hortaliças a Constantinopla, andava estafado e amadiçoava o seu destino. Pangloss desesperava-se por não brilhar nas universidades alemãs. Quanto a Martin, sentia-se firmemente persuadido de que se está igualmente mal em toda a parte; encarava as coisas com paciência. [...]
Martin veio a concluir que o homem era nado e criado para viver na inquietação, ou na letargia do aborrecimento. Cândido não concordava, mas não contrariava. Pangloss confessava que sempre sofrera horrivelmente, mas tendo afirmado uma vez que tudo ia às mil maravilhas, mantê-lo-ia sempre, embora não acreditasse em nada disso.
[...]
Na vizinhança habitava um célebre dervixe, que gozava da fama de ser o melhor filósofo da Turquia; foram consultá-lo. Pangloss tomou a palavra e disse-lhe:
— Mestre, nós vimos pedir-lhe que nos diga porque foi criado um animal tão exótico como o homem?
— Porque te preocupas? — disse-lhe o dervixe. — Que tens tu com isso?
— Mas, meu reverendo padre — declarou Cândido — o mal que cobre a terra é medonho!
— E que nos importa — respondeu o dervixe — que haja mal ou bem? Quando Sua Alteza envia um navio ao Egipto importa-se acaso em saber se os ratos que andam por lá estão ou não à sua vontade?
— Que devemos então fazer? — interrogou Pangloss.
— Estares calado — respondeu o dervixe.
— Ficaria lisonjeado — disse Pangloss — por discutir um pouco convosco acerca dos efeitos e das causas, do melhor dos mundos possíveis, da origem do mal, da natureza da alma, e a da harmonia preestabelecida.
O dervixe, ouvindo estas palavras fechou-lhes a porta na cara.
Durante esta conversa espalhara-se a notícia de que em Constantinopla acabavam de estrangular dois vizires e o mufti, sendo ampalados vários dos seus amigos. Esta catástrofe causou um grande rumor durante algumas horas. Pangloss, Cândido e Martin, voltando para a quinta, encontraram um velhote que se refrescava à porta de sua casa, à sombra de laranjeiras. Pangloss, que era tão curioso como racional, perguntou-lhe como se chamava o mufti que fora estrangulado.
— Ignoro — respondeu o bom homem — eu nunca soube o nome de nenhum mufti nem de nenhum vizir. Não sei nada do casso de que me fala. Eu acho que as pessoas que se envolvem nos negócios públicos morrem às vezes miseravelmente, e merecem-no. Eu nunca me informo do que se passa em Constantinopla; limito-me a mandar lá vender os frutos do jardim que cultivo.
Ditas estas palavras convidou para sua casa os estrangeiros. As suas duas filhas e os seus dois filhos serviram variados sorvetes que eles mesmo preparavam, sorvete polvilhado de limão cristalizado, laranjas, limões, ananases, pistácio, café Moka, sem mistura do péssimo café de Batávia e das ilhas; após o que as duas filhas do bom muçulmano perfumaram as barbas de Cândido, de Pangloss e de Martin.
— Deveis possuir — disse Cândido ao turco — uma vasta e magnífica propriedade.
— Tenho perto de vinte jeiras — respondeu o turco —, cultivo-as com os meus filhos. O trabalho liberta-nos de três calamidades: o aborrecimento, o vício e a necessidade.
Cândido, ao voltar para a sua quinta, reflectiu profundamente na frase do turco. Disse a Pangloss e a Martin:
— Este bom velho parece-me estar na posse de um destino preferível ao dos seis reis com quem nós tivemos a honra de cear.
— As grandezas — disse Pangloss — são muito perigosas, segundo afirmam todos os filósofos. Porque, enfim, Eglon, rei dos moabitas, foi assassinado por Aod; Absalão foi pendurado pelos cabelos e atravessado por três dardos; o rei Nadab, filho de Jeroboão, foi morto por Baza, o rei Ela por Zambri; Ocozias por Jehu, Atalia por Joad; os reis Joaquim, Jecónias, Sedécias foram feitos escravos. Toda a gente sabe como morreram Creso, Astíages, Dario, Denis de Siracusa, Pirro, Perseu, Aníbal, Jugurta, Ariovisto, César, Pompeu, Nero, Otão, Vitélio, Domiciano, Ricardo II de Inglaterra, Eduardo II, Henrique VI, Ricardo III, Maria Stuart, Carlos I, os três Henriques de França, o imperador Henrique IV. Todos sabem...
— Também sei — interrompeu Cândido — que é preciso cultivar o nosso jardim.
— Tendes razão — respondeu Pangloss —, porque quando o homem foi posto no jardim do Éden, ele aí foi posto ut operaratur, para que trabalhasse, o que prova não ter sido o homem criado para o repouso.
— Trabalhemos sem filosofar — disse Martin —, porque é o único meio de tornar a vida suportável.
Todo o grupo se associou a esta louvável intenção e cada qual tratou de exercer os seus talentos. A pequena quinta rendeu muito dinheiro. Cunegundes estava verdadeiramente feia, mas soube tornar-se uma excelente doceira; Paquette bordava; a velha cuidava das roupas. Até o frade Giroflée se tornou útil, sendo um bom carpinteiro; tornou-se mesmo num homem honesto; e Pangloss dizia por vezes a Cândido:
— Todos os sucessos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis; porque, enfim, se vós não tivésseis sido expulso de um belo castelo com grandes pontapés no traseiro por amor da menina Cunegundes, se vós não tivesseis passado pela Inquisição, se vós não percorrêsseis a América a pé, se vós não tivésseis dado um bom golpe de espada no barão, se vós não tivésseis perdido todos os vossos carneiros do maravilhoso Eldorado, vós não estaríeis aqui a comer os limões, doce e pistácios.
— Tudo isso está certo — respondeu Cândido —, mas é preciso cultivar o nosso jardim."
—Voltaire, Cândido, Linda-a-Velha, Biblioteca Visão, 2000, pp. 117-121
Martin veio a concluir que o homem era nado e criado para viver na inquietação, ou na letargia do aborrecimento. Cândido não concordava, mas não contrariava. Pangloss confessava que sempre sofrera horrivelmente, mas tendo afirmado uma vez que tudo ia às mil maravilhas, mantê-lo-ia sempre, embora não acreditasse em nada disso.
[...]
Na vizinhança habitava um célebre dervixe, que gozava da fama de ser o melhor filósofo da Turquia; foram consultá-lo. Pangloss tomou a palavra e disse-lhe:
— Mestre, nós vimos pedir-lhe que nos diga porque foi criado um animal tão exótico como o homem?
— Porque te preocupas? — disse-lhe o dervixe. — Que tens tu com isso?
— Mas, meu reverendo padre — declarou Cândido — o mal que cobre a terra é medonho!
— E que nos importa — respondeu o dervixe — que haja mal ou bem? Quando Sua Alteza envia um navio ao Egipto importa-se acaso em saber se os ratos que andam por lá estão ou não à sua vontade?
— Que devemos então fazer? — interrogou Pangloss.
— Estares calado — respondeu o dervixe.
— Ficaria lisonjeado — disse Pangloss — por discutir um pouco convosco acerca dos efeitos e das causas, do melhor dos mundos possíveis, da origem do mal, da natureza da alma, e a da harmonia preestabelecida.
O dervixe, ouvindo estas palavras fechou-lhes a porta na cara.
Durante esta conversa espalhara-se a notícia de que em Constantinopla acabavam de estrangular dois vizires e o mufti, sendo ampalados vários dos seus amigos. Esta catástrofe causou um grande rumor durante algumas horas. Pangloss, Cândido e Martin, voltando para a quinta, encontraram um velhote que se refrescava à porta de sua casa, à sombra de laranjeiras. Pangloss, que era tão curioso como racional, perguntou-lhe como se chamava o mufti que fora estrangulado.
— Ignoro — respondeu o bom homem — eu nunca soube o nome de nenhum mufti nem de nenhum vizir. Não sei nada do casso de que me fala. Eu acho que as pessoas que se envolvem nos negócios públicos morrem às vezes miseravelmente, e merecem-no. Eu nunca me informo do que se passa em Constantinopla; limito-me a mandar lá vender os frutos do jardim que cultivo.
Ditas estas palavras convidou para sua casa os estrangeiros. As suas duas filhas e os seus dois filhos serviram variados sorvetes que eles mesmo preparavam, sorvete polvilhado de limão cristalizado, laranjas, limões, ananases, pistácio, café Moka, sem mistura do péssimo café de Batávia e das ilhas; após o que as duas filhas do bom muçulmano perfumaram as barbas de Cândido, de Pangloss e de Martin.
— Deveis possuir — disse Cândido ao turco — uma vasta e magnífica propriedade.
— Tenho perto de vinte jeiras — respondeu o turco —, cultivo-as com os meus filhos. O trabalho liberta-nos de três calamidades: o aborrecimento, o vício e a necessidade.
Cândido, ao voltar para a sua quinta, reflectiu profundamente na frase do turco. Disse a Pangloss e a Martin:
— Este bom velho parece-me estar na posse de um destino preferível ao dos seis reis com quem nós tivemos a honra de cear.
— As grandezas — disse Pangloss — são muito perigosas, segundo afirmam todos os filósofos. Porque, enfim, Eglon, rei dos moabitas, foi assassinado por Aod; Absalão foi pendurado pelos cabelos e atravessado por três dardos; o rei Nadab, filho de Jeroboão, foi morto por Baza, o rei Ela por Zambri; Ocozias por Jehu, Atalia por Joad; os reis Joaquim, Jecónias, Sedécias foram feitos escravos. Toda a gente sabe como morreram Creso, Astíages, Dario, Denis de Siracusa, Pirro, Perseu, Aníbal, Jugurta, Ariovisto, César, Pompeu, Nero, Otão, Vitélio, Domiciano, Ricardo II de Inglaterra, Eduardo II, Henrique VI, Ricardo III, Maria Stuart, Carlos I, os três Henriques de França, o imperador Henrique IV. Todos sabem...
— Também sei — interrompeu Cândido — que é preciso cultivar o nosso jardim.
— Tendes razão — respondeu Pangloss —, porque quando o homem foi posto no jardim do Éden, ele aí foi posto ut operaratur, para que trabalhasse, o que prova não ter sido o homem criado para o repouso.
— Trabalhemos sem filosofar — disse Martin —, porque é o único meio de tornar a vida suportável.
Todo o grupo se associou a esta louvável intenção e cada qual tratou de exercer os seus talentos. A pequena quinta rendeu muito dinheiro. Cunegundes estava verdadeiramente feia, mas soube tornar-se uma excelente doceira; Paquette bordava; a velha cuidava das roupas. Até o frade Giroflée se tornou útil, sendo um bom carpinteiro; tornou-se mesmo num homem honesto; e Pangloss dizia por vezes a Cândido:
— Todos os sucessos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis; porque, enfim, se vós não tivésseis sido expulso de um belo castelo com grandes pontapés no traseiro por amor da menina Cunegundes, se vós não tivesseis passado pela Inquisição, se vós não percorrêsseis a América a pé, se vós não tivésseis dado um bom golpe de espada no barão, se vós não tivésseis perdido todos os vossos carneiros do maravilhoso Eldorado, vós não estaríeis aqui a comer os limões, doce e pistácios.
— Tudo isso está certo — respondeu Cândido —, mas é preciso cultivar o nosso jardim."
—Voltaire, Cândido, Linda-a-Velha, Biblioteca Visão, 2000, pp. 117-121
3 comentários:
Pedras no caminho?, como diria o Outro, minha amiga, tenho delas cheias as algibeiras...mas sei que um dia ainda vou construir um castelo!
beijo doce
Agora com um pouco mais de tempo o Jack e eu voltámos ao activo... Vsita o: She Hate Me... Voltou-se em força...
Olá gostaria muito de saber a respeito de uma imagem que encontrei neste blog está em http://mulheresdoavesso.blogspot.com/search/label/mulher.
Falo daquela imagem de um quarto com uma janela e um banquinho.
Gostei muito e queria usar em um trabalho.
Mas para isso preciso saber quem é o autor e se ele autoriza, cede ou vende a foto.
POR FAVOR entre em contato comigo:
Meu email é denisebit@hotmail.com ou denise.bittencourt@belas artes.br
Estou procurando a autoria desta foto há quase em mês. Preciso desta resposta para definir um trabalho. Sou designer e pensei na capa de um livro utilizando ela.
Obrigada
DENISE
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